De volta a 2013. Após algumas vitórias pontuais, a então “fervura”
de processos judiciais entre Matias e Desalinho se arrefeceu, tornando-se uma
mistura insossa e fria de atos processuais sem nenhum desfecho permanente.
Uma série de recursos tomou de assalto as instâncias
superiores, e, assim, uma procissão, de joelhos, subiria as escadas dos tribunais
brasileiros por anos, senão décadas.
Desalinho era devedora, no fim das contas, mas de apenas uma
pequena fração do que lhe era cobrado. Todas as cartas estavam na mesa, e de
certa forma, depois que as contas foram acertadas, ainda que provisoriamente, permaneceu
inerte, aguardando o veredito final, e permaneceria desse jeito se não fosse a derrocada econômica
de Matias.
As disputas judiciais com o meu cliente acendeu o alerta dos
parceiros comerciais de Matias, que começaram a desconfiar da lisura dos negócios
e a obter também decisões judiciais desfavoráveis a ele. Um ciclo vicioso de
derrotas, com teses e documentos sendo replicados nesses processos subsequentes,
que comprovavam a má-fé e o modo de operação das trapaças de Matias e Henrique.
Matias colocou a arma na cabeça da Desalinho, contudo não
poderia puxar o gatilho sem sair ileso. Isso é o que se chama de “impasse
mexicano”, e que povoa os filmes americanos de faroeste.
Não tardou muito para que, enfim, Henrique entrasse em
contato, flamejando para mim uma bandeira branca, numa tentativa desesperada de
pôr fim ao bombardeio sofrido em todos os flancos e receber o que era devido
logo. Marcamos uma reunião para o dia seguinte na casa de Matias, em vez do
escritório da empresa. Essa era a única condição.
Avisei na sequência o novo representante do cliente sobre o
início da tentativa de acordo, que não sabia do que se tratava. Da minha parte,
era um alívio poder pensar em me livrar daquilo tudo, principalmente por causa
do desinteresse que tomou conta com o passar do tempo, sem falar da baixa
remuneração. Porém a história ganha um certo tom bizarro a partir daqui.
A casa de Matias é um verdadeiro palacete, e muito bem
localizada em São Paulo. Havia lá empregados diversos para a manutenção da casa
e a prestação de serviços domésticos, e até uma secretaria, que o auxiliava em
pequenas tarefas, por exemplo, para usar o celular e preencher uma agenda, um
daqueles cadernos compridos de capa preta.
A secretaria nos guiou da porta até uma sala enorme, onde o
representante destacado da Desalinho e eu aguardávamos a audiência.
Na sala, um relógio enorme de madeira marcava 4:14 horas,
com o pêndulo parado, todavia. Parecia alguma espécie de relíquia, que se
somava a pinturas diversas na parede e a outros móveis cujo preço incluísse
talvez valores históricos. Tudo disposto de maneira aleatória, como em um museu
itinerante, prestes a zarpar. Não sei se mirei muito a escrivaninha, ou se isso
fazia parte do guia de visita, mas a secretaria explicou, pacientemente, a
história do luxuoso móvel, refeito a partir da porta da casa de alguém ilustre,
que viveu há muitos séculos. De fato, depois percebi que a mesa possuía um
certificado emoldurado sobre a procedência, algo mesmo de exagerada pompa para se
ostentar na sala de casa.
Passados alguns minutos, finalmente os anfitriões nos
receberam. Matias vestia um robe, como um desses milionários caricaturados, parecia
o Sr. Burns. Nesse momento deixei escapar um sorriso, a cena era bastante cômica.
Ainda bem que o sorriso provavelmente foi interpretado como sinal de cordialidade.
Cumprimentei Matias e Henrique, e todos nós entramos em uma espécie de sala de
reuniões improvisada com equipamentos médicos.
Matias logo propôs um acordo rápido, que favorecia ambas as
partes, como um desabafo, ao mesmo tempo que tentava manter o ar de arrogância costumeiro.
Henrique era lacônico, como um réu confesso. O acordo era parte da tentativa de
Matias salvar o próprio legado, e quando o representante da Desalinho recusou a
proposta, pôs-se a contar sobre a parte gloriosa de sua epopeia ao Brasil. Nada
disso mudou o número previamente calculado por analistas e aprovado pelos
escalões competentes da Desalinho.
A parte podre das histórias de Matias surgiu em um momento
mais reservado, em reuniões seguintes, em que discutíamos como promover um
acordo que fosse mais benéfico à Desalinho, indiferente aos apelos do, agora
visivelmente, moribundo. Como a velhice estava sendo cruel a Matias. Uma dessas
doenças degenerativas lhe corroía impiedosamente o corpo, a sanidade e os
reflexos, à medida que o palacete era depenado e mutilado por dentro pelos
credores.
Com o impasse no acordo, cada vez mais as reuniões se
transformavam em confessionários. Depois de um tempo, embora injustificáveis,
as paranoias, a maldade, a exploração alheia e a canalhice pareciam fazer
sentido. Afinal, aquele império de outrora somente se manteve unido, em pé, por
causa dessa fórmula maligna. Velho e doente, Matias não dispunha mais dos
ingredientes necessários para manter tudo o que criou, tomou e reuniu intacto.
As reuniões se tornaram cada vez menos frequentes, até que
Matias morreu, levando consigo a história sem furos. A notícia da morte chegou
com a aceitação da proposta, por Henrique, quem enganou Matias, e cuja pena era
cumprida pelo casamento com a filha do chefe, Margarida, uma pena perpétua, que
abraçou voluntariamente.
Henrique, “o milionário”, recebeu muito dinheiro em nome de
Matias e de sua família pelo acordo feito com a Desalinho, e continuou a viver
a vida que sempre quis, dessa vez sem a sombra do sogro.
E, das prateleiras, os autos do processo foram encaminhados
ao arquivo.
Dr. Honorários
Abril de 2018